mardi 31 août 2010

Vazio Construtivo




Acompanhei minha mae ao aeroporto certa vez que ela voltava sozinha aqui da França, e no retorno de trem, uma sensaçao inusitada e forte fez brotar em mim um texto que publico hoje, fruto de, creio eu, esse vazio construtivo que nao conheço muito bem.

No fio da meada.

Na partida, pouco drama, mas já um fio de despedida. Em breve, ela estará lá, em casa, em parte ainda a minha casa, também. E eu, estarei de volta à minha, também em parte, aqui desse lado do oceano. Dividida no lar, na fibra que quer permanecer e na que quer partir.
Seguimos juntas, em direção ao Aeroporto, no trem, que foi enchendo de pessoas, pouco a pouco. As malas dela, atrapalhando alguns, ignoradas por outros, indicavam uma longa viagem, cheia de alegrias e bons momentos.
Um sentimento de euforia invadia-nos, da confusão da fila até o momento do check-in. O tempo foi vivido entre últimos conselhos, risadas e certa ansiedade até o momento da distância física se fazer novamente. No momento do embarque, o fio da despedida, num abraço calado, amarrado, por nada poder ser dito, como um fio estendido, tensionado, até que ela sumiu de minha visão e de meu alcance, para voar para bem longe… o fio, não mais tensionado, relaxou-se e acompanhou o dolorido dos meus passos, no caminho de volta ao trem.
Já eram quase dez da noite e o trem estava vazio. Vazio reconhecido em mim, mas não identificado: vazio de falta, ou contraditoriamente, de pleno? Momento denso, intenso, de nó na garganta a uma fusão de sentimentos. Acompanhando a minha respiração, sentei-me apoiando a cabeça no encosto daquele duro assento, tentando encontrar uma posição confortável. Olhei pela janela, aliviada por ter escolhido, sem querer, a proximidade de uma vidraça que podia ser semi-aberta - raridade nos vagões parisienses.
Enquanto o trem não se movia, fiquei ali, sentindo a brisa abafada e fétida que subia das entranhas da grande Paris. O trem partiu e de repente… lá estavam eles: os fios. Pela faixa estreita da janela entreaberta, os fios condutores de eletricidade dançavam diante dos meus olhos. Eis que meu coração vazio se enche de um contentamento sublime, leve, quase infantil. Um jogo mágico me alegrava o espírito e acalmava a respiração. Surpreso pela descoberta, e encantado pela beleza simples do movimento, meu coração palpitou mais lento, acompanhando a dança que continuava se fazendo.
O céu, azul ainda, antes de o sol se deitar - como é dito por aqui - permitia essa visão pelo contraste do escuro dos fios, com seu fundo azul turquesa. E enquanto essa dança harmônica se fazia diante dos meus olhos - como se os fios se entrelaçassem, se afastassem e se reencontrassem, parecendo se tocar, sem, contudo, fazê-lo, pois seguiam certamente trajetos distintos - eu divagava em meus pensamentos.
O balé sustentava-me naquele instante efêmero, num fenômeno que a mim pertencia, ao meu olhar, e todos os outros, no vagão, não notavam, nem o jovem que estava imóvel, desde que sentara ao meu lado. O fenômeno era real, eu o via, não era fruto da minha imaginação, e, a partir deste momento, pude seguir, analogicamente, um entrelaçamento de idéias comparativas, relacionadas à representatividade do fio e seus desdobramentos. Segui viagem seguindo os fios, traçando paralelos na vida, assim como os paralelos que eu via. Encontrara um suporte emocional na relação viva com uma impressão jamais sentida antes.
Os fios paralelos poderiam ser comparados às nossas vidas, que seguem um rumo particular. Os fios que se aproximam, seguem caminhos parecidos, mas não os mesmos. Se um fio chega a tocar o outro, um fenômeno é produzido: uma faísca reluzente arrebenta-os. Mas algo pode ser recuperado, com a condição de ambos os fios sacrificarem parte de sua escolha pelo caminho. Aproximando seus trajetos e unindo-se em coesão, tornando-se um só fio, grosso e resistente, tudo se restaura, vendo assim, como dois seres, envolvidos por uma busca, que seguem juntos, transmitindo sua corrente.
Mas os fios paralelos também poderiam ser simplesmente cúmplices, acompanhando-se lado a lado, respeitosamente. Os caminhos aproximam-se, diferem, mas no fim do trajeto, encontram-se muito próximos, como seres envolvidos pelo fio da amizade, da fraternidade, seguindo seus próprios destinos, sem, contudo, interferir no do outro, envolto em uma sintonia silenciosa e compreensiva.
Era essa a relação estabelecida instantes antes, no aeroporto, no abraço calado. A ausência de palavras agiu como uma profunda aceitação de escolhas: a de quem vai e a de quem fica. E assim se diluiu uma sensação vivida, lida entre os paralelos do cotidiano, marcada na pele e na vida.


Mas o trajeto dos fios tem começo, meio e fim. Ele pode sofrer uma pressão de estiramento dos dois pontos de suas extremidades, que definem a tensão de suas fibras. Fio esticado, tensão extrema, a corrente da energia é como a corrente da vida. Sem tensão, nao há energia circulando e não há vida. Essa energia que segue pelo fio da vida, nutre, faz- nos , como máquinas, funcionar de forma eficaz . Entretanto, pode desviar- se, sem que nos demos conta, para outras esferas alimentares e assim, podemos, analogicamente, permanecer com o fio tensionado durante toda a vida, acreditando estar produzindo o máximo de energia, enquanto o tempo nos judia e se finge de guia. Dedicamo-nos ao tempo como enlouquecidos, na ânsia de algo alcançar… mas o que nos aguarda no final da linha ? Que pressa é essa que não nos permite parar ?
Contudo, o fio pode, se relaxado, seguir com uma outra qualidade. Sim, ele não tem pressa para chegar, afinal, não marcou hora com ninguém no fim do trajeto… Vive o instante mesmo, cada entrelaçamento da fibra. Chega ao destino mais sábio, mais vazio e mais pleno, plenitude esta de relaxamento total. Seria este o ponto final? O encontro com a ausência de tensão e de vida ?

Mas o trem entra em Paris, e assim, os fios desaparecem da minha visão, enquanto mais e mais pessoas enchem o vagão. Uns sorridentes, cheirosos e bem vestidos anunciavam uma balada prevista num sábado fresco de primavera; enquanto outros, solitários, mergulhados em seus mundos virtuais - ora pelo celular, ora escutando suas músicas prediletas « ao pé do ouvido », denunciavam a fuga de um encontro com o próprio silêncio. Fios seguindo as mais variadas direções, mas, será que conscientes destas condições ?
Algo, nesse momento, chamou minha atenção: um senhor, vestido como um sulfi, com uma touca bege e longas vestes, sentara - se atrás de mim no trem da ida. Pois o mesmo acabara de entrar no mesmo vagão. Entre um estalo e um choque, me vi surpresa com o acontecido. Fios próximos ou não, o meu e o dele, coincidência ou não : que tensão era exercida em nossos fios, para dois encontros assim, completamente ao acaso? Calei-me em meio à multidão, diante do tempo e desse reencontro sem razão aparente.
E, ao sair novamente do longo trajeto subterrâneo parisiense, surpreendi-me com o escuro da noite e com o fundo negro de uma noite sem lua: perdi o fio da meada. Mesmo sabendo que os fios ainda estavam lá, algo saiu do lugar: eu não podia mais vê-los. Contentei-me então com o meu, o que já não é pouco… e com o do rapaz sentado ao meu lado, que ainda estava ali, alheio a todo o resto, imóvel desde o começo de seu trajeto até o final do meu.
Quando desci do trem na minha estação, vi que ele continuou no vagão, levando, consigo, seu fio, e eu fui seguindo com o meu, sabendo, agora, que está em minhas mãos…