mercredi 17 octobre 2018

Laboratório do futuro

Preciso contar pra vocês uma história. Como fundo : amor, dedicação e esperança. Ela fala sobre a vida de uma cidade desconhecida de muitos, chamada Grande Synthe, a mais setentrional da França. A beira mar, me fez pensar numa mistura de Angra e Cubatão, abrigando praticamente lado a lado uma usina nuclear e uma siderúrgica. Quem vê de longe aquele conjunto de luzes não imagina que está na Capital Francesa da Biodiversidade (2010).
Tudo começou quando uma família vinda da região de Lorraine se instalou na cidade. Quem conta é o atual prefeito, Damien Carême, de olhos grandes de uma urgência profunda. Ele jamais se esquecera da visão que teve ao chegar : a da ausência completa de árvores. Seu pai, prefeito durante 20 anos, plantou tantas árvores que um bosque inteiro se formou, fazendo o próprio filho assumir com responsabilidade sua continuidade, em 2001. Hoje, algumas árvores já estão precisando ser substituídas, pois tem vida curta, e as que chegam são frutíferas, para que cada habitante festeje as mudanças de estação com as nuances de cores que elas trarão - fala agora, com os olhos brilhando de esperança.
Em volta do bosque, casas e prédios se voltam ao jardim. Eles são absolutamente sustentáveis, com produção zero de gás carbônico. A cidade vai mostrando um perfil diversificado, coerente e acolhedor...
O acolhimento deve ter surgido como uma real necessidade. Em pouco tempo, o fluxo migratório de quem deseja chegar a Inglaterra passou de 100 a 3000 pessoas. As rudes condições de vida dessas pessoas se transformou numa rede de solidariedade, que se recusou à dar as costas aqueles que necessitam. Médicos sem fronteiras, a prefeitura e inúmeras associações estendem até hoje as mãos à esses seres, passageiros e humanos como todos nós. Com olhar aflito, relata o abandono do estado... mas com o investimento de 2 milhões de euros do Médicos Sem Fronteiras e 400.000 da prefeitura, conseguiu criar o Primeiro Acampamento Humanitário da França. Afegãos, sírios, Iraquianos, iranianos; engenheiros, médicos,eletricistas, encanadores - todos buscando uma vida melhor. Dividindo os 2500 lugares entre os 500 galpões aquecidos, entre sopões, festas típicas, um centro feminino que revela momentos de canto e prece - por minutos, pude me sentir próxima à eles, tão diferentes e ao mesmo tempo, tão parecidos conosco, todos habitantes desse planeta que não deveria ter fronteiras. Mas qualquer sociedade apresenta divergências, e quando a intolerância toma conta, as consequências podem ser desastrosas.
Numa noite de atrito entre pessoas de origens diferentes, que vivem tradicionalmente em conflito, tudo foi abaixo. Em 11 de abril de 2017, o fogo destruiu o pouco que lhes restava, só não apagou a dignidade dessas pessoas que assumiram e lamentaram seus erros. Felizmente não houveram vítimas... Eles continuam por ali, esperando o dia nascer para poder agradecer pelo seu término. Esperando o momento certo, se tiverem sorte, de alcançar seus destinos.
Em cada rosto, a empatia estampada. Em cada gesto, um compartilhar simples e tão necessário. Um grande desejo brotou em mim, nesses tempos sombrios... que a perseverança de cada um deles atinja o coração de cada um que cruzarem, e que sucessivamente, essa onda de amor e solidariedade se espalhe pelo mundo, atravessando essas fronteiras fictícias e atingindo em cheio o ser mais profundo que mora em cada um de nós.

"Nous sommes dans toutes les crises : sociale, énergétique, écologique, et maintenant migratoire. On arrive au bout d'un système et les politiques continuent leurs vieilles recettes, ça ne peut plus marcher, il faut se réinventer."

"Nós estamos em todas as crises : social, energética, ecológica e agora migratória. Estamos no limite de um sistema e os políticos continuam suas velhas receitas, isso não pode mais funcionar, é preciso se reinventar".

Damien Carême, prefeito de Grande Synthe

vendredi 12 octobre 2018

Pelas crianças

Enquanto houver criança, haverá pureza. Um olhar que descobre o novo em tudo, se admira com o que aprende, encontra a beleza de uma alma que se reconhece no que está fora; na natureza, na gentileza de um gesto, no cuidado que recebe de alguém. E que no futuro reconhecerá que o que está dentro terá nascido dessa relação...
Enquanto houver criança haverá sabedoria. Na humildade de saber que nada sabe, aprende com alegria e absorve o conhecimento como alimento profundo, estrutural; não se impõe ao outro, respeita-o naturalmente, pois sabe secretamente que são iguais e compartilham as mesmas emoções. Sem ter consciência, a criança ensina empatia, para aqueles que tem a escuta atenta...
Enquanto houver criança, haverá esperança. Onde o erro faz parte do aprendizado e da construção de si mesmo, não há dor e sofrimento, mas o encontro com uma realidade desconhecida : contato que amedronta, mas que, se amparado com amor e cuidado, fortalece e marca, prepara o terreno para a vida...
Enquanto houver o sorriso do Joca, o olhar da Nina, a dança do Mathéo, a meiguice da Yasmin, a voz do Iago, meu coração se acalmará. Enquanto as crianças tiverem a força de se manter isentas da hipocrisia, da ambição, da crueldade, da ignorância e da arrogância do adulto que não enxerga a herança triste que está deixando, ainda há esperança. Ainda podemos aprender com elas, e melhorar nossas decisões daqui em diante. Se não for por nós, que seja ao menos pelas crianças... 

mercredi 3 octobre 2018

Se deixar nutrir

Atualmente tem sido difícil me permitir ser surpreendida pelo novo. Eis que diante de uma delicadeza simples, a aproximação foi praticamente inevitável.
Me encontro diante da proposta de um conjunto de pratos coloridos, de misturas inusitadas e desconhecidas, como se tivesse sido preparado especialmente pra mim. Não há praticamente escolha, e gosto disso.
Da pequena bocada que chega para abrir a sequência à sobremesa, uma grande experiência se faz.
O restaurante não é japonês, nem totalmente francês. Um chefe japonês contextualiza à sua maneira a cozinha francesa, com primor.
O primeiro copo de saquê já anunciava a surpresa. Delicadamente doce, o sabor era encontrado ao longe, como se fosse o destino de um longo trajeto. A taça de haste fina praticamente exigia uma atenção especial na aproximação à boca, com o aroma chegando antes. O segundo copo era artesanal, mais fermentado e rústico, e ainda assim acompanhava o peixe com delicadeza e frescor.
O polvo grelhado se casava com seus acompanhamentos de forma nova e inusitada a cada garfada. Gostos novos e conhecidos me surpreendiam como se o mar estivesse ao fundo, se oferecendo em perfume com cada ingrediente que encontrava, folhas, flores, raízes... Marcel Proust me emocionara com suas madeleines, mas não saberia que poderia viver o mesmo.
Me rendo definitivamente à emoção que encontro na sobremesa. Como se vivesse o encontro dos primeiros pêssegos de verão, declinado em várias formas, perfumes e texturas; a arte de equilibrar e respeitar um produto me alimenta profundamente. 
Choro de alegria ao perceber que aos 45 anos o novo ainda me espera, logo ali, se eu estiver disposta à me abrir à ele... 

Entre luz e sombra

Tenho sido sombra. Muita sombra, sombra de todos os lados. Vi isso hoje, quando surgiu uma fresta. Uma fresta de luz que trouxe um sopro fresco e úmido de vida. Aí me dei conta, que estou sombra.
Sombra que acompanha todo o meu dia, cada pensamento, cada olhar. Olhar que se pousa de repente, ao longe, procurando no nada encontrar o vazio. Sendo sombra, tento fugir das sombras dos pensamentos.
A fase já era para ter passado. Quando o sangue vai embora, leva as sombras com ele. Dessa vez não foi assim. Ela insiste em ficar, não se rende à mansidão dos hormônios. Acaba por intensificar a sensibilidade, a dor.
Mas volto à fresta. Graças à ela posso escrever. Busco na escrita esse sopro de volta. Suas reminiscências estão lá; suspiro profundo e reencontro o ar dessa tarde, vendo o namoro de duas borboletas brancas. Talvez a luz esteja aí, nesse rompante da natureza que vem esfregar na minha cara sua perfeição concreta e me traz de volta à vida e à sua verdadeira realidade.