jeudi 22 novembre 2018

O verdadeiro gosto do trabalho

Demoraram a amadurecer os tantos tomatinhos que ficaram enfeitando minha bancada, enquanto se bronzeavam ao sol de outono. Acabaram por rugir diante dos nudismos ocasionais da casa.
Recebi varios conselhos do que fazer com eles : uns fizeram geléia, outros picles; nem esperaram amadurecer. Resolvi me lançar no desafio de fazer tomates secos com os pequeninos. Só não tinha noção do labor...
Convidei o Iago pra me ajudar. Cortar ao meio e retirar as sementes sem amassá-los. Missão simples, mas que aos poucos foi se mostrando longa e fastidiosa. Já com os dedos enrugados, pediu para abandonar a função. Até que fôra longe, para a paciência de uma criança de dias de imediatismo. Talvez o lado escoteiro falou alto...
Para mim, as horas foram se mostrando longas, os músculos precisos dos dedos utilizados se cansando enquanto a cabeça acompanhava o gesto repetitivo, não sem uma certa angústia. Mais de três horas se passaram, para, por fim, encherem três vidros. Improvisando no tempero, fui atras de gostos que aprecio sem desrespeitar os constrastes. Azeite, alho, alcaparras e azeitonas pretas. Esgotada, o sábado a noite foi de um repouso justo, como o devem ser de quem labuta, da lavadeira de rio ao operário, do cozinheiro à vendedora. 
Do começo do plantio à colheita. Da espera, ao encontro pleno do trabalho terminado.
O resultado, só pude apreciar dias depois. E ali, naquele pedaço de pão amanhecido, pude me realizar com os encontros que a minha intuição sugerira, uma apreciação quase secreta, de mim pra mim mesma, da sutil surpresa inesperada. 

Os tomates e o pássaro.

Dias atrás, chegou a hora de me despedir de meus pés de tomate. Entre nós se criou um tipo de relação de mãe e filho; onde eu os nutria de cuidados e alimento, e eles me nutriam por sua vez com seus frutos. Enquanto eram doces e tenros, os colhi com escantamento e gratidão. Com um maravilhamento do milagre da vida, em sua forma mais perfeita. Mas com os dias mais curtos e menos ensolarados, os pequenos começaram a ficar extremamente ácidos. As geadas se anunciavam.
Reservei uma tarde calma e ensolarada, a horta estava vazia. Podia escutar os pardais que papeavam e de repente mudavam de lugar em revoada.
Colhia ternamente meus ultimos filhotes tomates, ainda verdes. Ia tentar amadurecê-los em casa. Um senhor havia me contado um segredo...que eles certamente iriam rugir se presenciassem nudez pela casa. Certeza que isso aconteceria em casa...
Já revirando a terra, me surpreendo com um passarinho de ventre laranja e bico fino que me olha fixamente. Fico imóvel de imediato, como se quisesse ficar transparente para que ele se aproximasse e não se sentisse ameaçado. E incrivelmente foi o que aconteceu. Me senti transparente, fazendo parte dessa terra, desse céu. Partilhando com ele esse instante, me retirando para que ele ocupasse o espaço. Instantes longos se passaram, de inusitada comunhão. Enquanto ele beliscava minhocas com o bico, fui me sentindo mais livre para também me mexer, como se ele permitisse que eu usufruisse de sua companhia, não se sentindo mais ameaçado. E do jeito que veio, se foi, me deixando ali, pequenina e inteira com meus tomates verdes.
O cansaço e o lamento de arrancar meus tomateiros, aos quais tinha me apegado profundamente, deram lugar a sensação de que tudo tem sua hora e lugar. Era a vez do pássaro se alimentar...

mardi 13 novembre 2018

Pedaço de livro, vivo.

Quando o livro fica zanzando na bolsa e não vem pra mão, eu não insisto. Tudo ao seu tempo. Pode faltar espaço no metro para abri-lo, pode ser que o por do sol esteja mais interessante; que as crianças barulhentas azucrinando o provavel pai estejam mais divertidas do que as páginas desconhecidas.
Eis que, como eu não tenho chegado à ele, um trechinho de um chegou à mim. Passa das oito e meia da noite e pegamos a linha 6 no ponto inicial, voltando pra casa.
Sento numa das poltronas internas do ultimo vagão, próxima a janela, pra ver a Torre Eiffel. Colada na janela, um envelope branco, dizendo "Sirva-se : Noite Branca Cervejas Calmas". Hesito, mas não me demoro a ceder à curiosidade. Pego uma das folhas, duplas, impressas em letras grandes, com trechos espalhados em meio as linhas padronizadas. Sorrindo, me deixo entrar na brincadeira. Descubro ali uma vida que poderia ser a minha, a do meu filho, ou da minha vizinha. Uma mãe espanhola que aluga um quartinho pro filho e fica muito p... pelo estado do lugar. Entramos na mudança, na arrumação, no relaxamento do serviço acabado...e por fim, na partida da mãe, deixando ao filho, cochichando ao pé do ouvido, o contato de um pai desconhecido.
Entre uma página e meia dúzia de estações, meus ombros relaxam e voam visitar outras vidas. Gratidão pelo envelope encontrado naquela janela, reconheço agora a falta que estar num livro me faz...